EU FIZ / SOU ISSO?
- Triep
- 2 de abr.
- 4 min de leitura
Atualizado: 2 de abr.
Em entrevista ao site Tudum, Stephen Graham - um dos criadores e atores da série Adolescência (Netflix, 2025) - disse que a ideia dessa série surgiu do choque causado por um incidente ocorrido em Liverpool (Reino Unido), no qual um adolescente esfaqueou até a morte uma garota.
Graham e seu parceiro de criação, Jack Torne, propuseram-se a discutir sobre masculinidade tóxica e os efeitos do mundo digital nesse contexto de violência juvenil. Perturbado diante dos acontecimentos, Graham teria se perguntado: “O que está acontecendo? Como chegamos a isso?”.

Muitos de nós nos pegamos torcendo para que não fosse verdade quando Jamie Miller (Owen Cooper), aquele frágil menino de 13 anos, foi tirado de sua cama e levado por policiais sob suspeita de ter esfaqueado até a morte uma colega de classe. Para muitos, ainda, o espanto aumenta quando se observa que não se trata de uma “família desestruturada”, o que tornam inconsistentes alguns comentários sobre a série os quais se apoiam no lugar comum e imediatista de que os pais de hoje seriam relapsos. Como se vê no decorrer da história, esse tipo de argumento não se sustenta perante Eddie (Stephen Graham) e Manda Miller (Christine Tremarco), pais de Jamie. Eis o que dá a medida da nossa surpresa.
O 3º episódio dessa série me interessa aqui por apresentar os possíveis contornos do que os olhos não veem e escapa aos apressados. Na sessão de avaliação psicológica de Jamie, Briony Ariston (Erin Doherty) - a psicóloga responsável - oferece a sua escuta profissional para entender o menino. Por certos pontos de semelhança, poderíamos pensar esse encontro como uma sessão de análise, cujo trabalho se debruça sobre o material trazido pelo analisando, que vem sempre movido por uma pergunta que o incomoda: “O que é isso que acontece comigo?”.
Durante a sessão, Jamie tenta manter a pose de que é senhor de si, “retrucando”, sobretudo, diante das perguntas que envolvem o pai. Chega a ensaiar uma imagem de virilidade quando mente a respeito de relações de cunho sexual que tivera com duas meninas. Talvez, desejasse, inconscientemente, agradar àquele pai musculoso (“másculo”) que se decepcionava com sua inaptidão para os esportes. Mas... “o que acha que é ser homem?”, pergunta a psicóloga, depois de observar que ele “como qualquer um, é complexo demais pra ser decifrado com perguntas diretas”, pois “a questão é muito ampla”.
Numa sessão bastante tensa, na qual se configuram os sentimentos de rejeição e de vergonha a que Jamie se sentia exposto e, após abordarem a cena do homicídio, Briony lhe pergunta se entende o que é a morte e afirma que Katie (Emilia Holliday) estava morta e não voltaria mais. “Não fui eu!” - ele insiste novamente – “não matei ela!”. Ele começa a dizer que, naquele encontro no parque, estava tentando desqualificar o que diziam sobre Katie e condenando o que fizeram com as fotos dela, o que transpareceu a intenção de demonstrar o quanto era um bom menino, querendo crer e fazer crer que era melhor que os outros, que uma pessoa como ele não mataria alguém, como se dissesse: “Eu não sou/fiz isso!”.

De certa forma, a escuta e o manejo da sessão conduziu Jamie àquilo “que não estava apropriado subjetivamente”, ou seja, Jamie (Eu) não se reconhece naquele ato (Isso). Em O ego e o Id (1923), Freud nos incita: “Onde estava Id, Ego deve advir”. No lugar de Id, leia-se Isso. Daí vem a questão reincidente que chega à clínica: “Eu não sei como isso me aconteceu”. Por essa razão, Freud afirmara que “o Eu não é senhor dentro de sua própria casa”. Há algo estranho-inquietante (Unheimlich) o qual, como um estrangeiro, um outro, inconsciente, habita a mesma casa do Eu.
O objetivo da clínica psicanalítica é o que podemos chamar de processo de subjetivação, ou seja, levar o Eu a apropriar-se do Isso, essa instância que surpreende o Eu como um corpo estranho, agindo à sua revelia. Assim, o analisando torna-se sujeito de suas ações, quer dizer, implica-se nos
acontecimentos de sua vida como parte responsável. E a partir desse processo de apropriação subjetiva, restabelece sua condição ativa de sujeito, isso é, seu Eu se fortalece, conforme formulação do psicanalista francês René Roussillon.
É nítido o quanto a última sessão abalou Jamie, pois ele foi posto a se escutar, através do suporte oferecido pela escuta do outro. No entanto, eu arriscaria a hipótese de que seu pequeno passo de subjetivação instaurou um “rito de passagem” (próprio da adolescência) para o fortalecimento do Eu: Jamie telefona para o pai (chama-o) e diz que mudará seu depoimento, gesto que podemos atribuir à sua mudança um pouco “mais ampla” (de apropriação subjetiva). Nesse “chamado ao Pai”, parece querer legitimar a lei que instaura sobre si mesmo, ou seja, acatando-a como interdição. Por extensão, ao assumir o crime, ele busca no pai, de certa forma, a validação que o introduziria no universo masculino, para ele um universo de homens fortes e corajosos.

Samuel Veratti
Psicanalista, membro colaborador do TRIEP
npsveratti@gmail.com, @s.veratti_psican
#psicanalise #psicanalistasjundiai #psicanalisejundiai #triepjundiai #triep #samuelveratti #adolescência #minissérieadolescente #netflix
Comentários